Curas imaginárias

O secretário RFK Jr promove o uso de vitamina A para prevenir e tratar sarampo, e minimiza a necessidade da vacinação

Hospitais no Estado do Texas, EUA, estão reportando casos de crianças com problemas hepáticos decorrentes de excesso de vitamina A. Parece loucura? Na verdade, já tivemos algo parecido no Brasil, com o uso exagerado e indevido de medicamentos reais para tratamento imaginário de doenças também reais, e infelizmente, potencialmente graves.

Em março de 2020, ainda antes do assunto estourar na grande mídia, uma cena na farmácia me chamou a atenção. Morava em São Paulo e, enquanto esperava minha vez, pelo menos umas cinco pessoas entraram procurando hidroxicloroquina, um remédio muito usado para tratamento de doenças autoimunes como lúpus e artrite reumatoide. Meu radar de que algo estava errado disparou quando o farmacêutico falou que estava em falta.

As pessoas estavam comprando para estocar em casa. Não muito tempo depois, o telefone começou a tocar. Eram colegas e jornalistas perguntando se eu tinha visto a declaração do presidente Donald Trump de que a FDA (agência regulatória de medicamentos e alimentos dos EUA) tinha aprovado o uso de hidroxicloroquina para prevenção e tratamento de Covid-19. A FDA na verdade não aprovou nada, apenas emitiu uma autorização para uso especial de emergência, até que estudos fossem concluídos.

No Brasil, Jair Bolsonaro pegou carona na declaração de Trump, e começou a promover o uso do medicamento, que chegou a fazer parte de uma política oficial de saúde para tratamento de Covid-19. Ao mesmo tempo, criou-se a separação, altamente politizada, entre o remédio milagroso e vacinação. Quem não se lembra da frase “Quem é de esquerda toma vacina, quem é de direita toma cloroquina”?

Uma série de estudos controlados demonstrou que hidroxicloroquina não previne nem cura Covid-19. Mas o estrago já estava feito. O primeiro sintoma foi o sumiço do remédio das farmácias, prejudicando o tratamento contínuo que diversos pacientes reumatológicos fazem. O segundo foi afastar as pessoas das campanhas de vacinação e do tratamento adequado. E, finalmente, o terceiro, o uso excessivo e sem indicação médica da hidroxicloroquina, que não é inofensiva. Efeitos adversos incluem dor, fraqueza muscular, alterações no fígado e queda de plaquetas.

A situação no Brasil deveria servir como aprendizado para o mundo sobre o que acontece quando o negacionismo de ciência e saúde vem de cima, de fontes oficiais. Por mais que cientistas e jornalistas se esforçassem para desmentir a desinformação, ela vinha diretamente do governo e do Ministério da Saúde.

Cinco anos depois, em outro país, com outra doença, assisto a uma situação muito parecida. Mudei para os EUA em 2021. Foi aqui que tomei minha primeira vacina de Covid-19. E eis que em meio a um dos maiores surtos de sarampo dos últimos anos, com mais de 320 pacientes acometidos, 40 hospitalizados e uma criança morta, o secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. (RFK Jr) promove o uso de vitamina A para prevenir e tratar sarampo, e minimiza a necessidade da vacinação. Reportagem no The New York Times mostra que a vitamina está em falta em alguns locais do Texas, e crianças estão chegando aos hospitais com sintomas típicos do uso excessivo.

Vitamina A é lipossolúvel, acumula no corpo. O excesso não sai na urina como a vitamina C, por exemplo. O uso indiscriminado é toxico, e pode provocar danos no fígado, além de irritação na pele, problemas de visão, e alterações no feto em mulheres grávidas. Médicos relatam casos de crianças que vêm tomando grandes quantidades da vitamina há semanas.

Fica cada vez mais difícil mostrar otimismo quando me perguntam o que aprendemos com a pandemia e se estamos mais preparados para uma próxima. Continuo acreditando que a maior ameaça à humanidade não é um vírus ou desastres ambientais, mas pura e simples estupidez.

Fonte: O Globo.


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