Esses dias, li um post nas redes sociais que dizia que, quando temos algum sintoma, o corpo não está reagindo exageradamente, mas se lembrando de tudo que já viveu. Que ele “não é dramático, e sim um cofre de memórias”.
O texto falava especificamente sobre como traumas de experiências passadas podem influenciar as reações físicas no nosso corpo, e como elas vêm sempre carregadas de muita história.
Sendo uma pessoa que vive com dor crônica há alguns anos, aprendi que existe um fenômeno chamado “memória de dor”: a capacidade do cérebro de modular a intensidade das nossas dores de acordo com o que lembramos, conscientemente ou não.
Isso quer dizer que, quando você tem uma dor de cabeça, principalmente se ela for crônica, o nível daquela dor será influenciado, também, pelas suas últimas dores de cabeça e tudo que estava acontecendo ao redor delas — ou talvez por todas dores de cabeça que você já teve na vida.
Eu criei milhares de memórias de dor ao longo desse tempo. Lembro como, em 2021, passei por um dos piores anos da minha vida, sentindo dores horríveis e pulando de médico em médico sem encontrar nada que pudesse me salvar. Eu me lembro de todos os tratamentos aos quais submeti o meu corpo. Eu me lembro do meu sofrimento e, também, do sofrimento de todos a minha volta. Eu me lembro do olhar da minha mãe.
Eu me lembro de todas as sensações no meu corpo e, hoje, quando as sinto novamente, é como se voltasse para aqueles dias de cama na casa dos meus pais. Quando sinto dor, ela não é apenas um sintoma, mas um acumulado do que já vivi. A minha dor de hoje também é a minha dor de ontem.
A vontade que tenho é de arrancar à força essas memórias da cabeça, como se num passe de mágica eu pudesse lembrar novamente como é sentir dor pela primeira vez. Tenho vontade de desaprender tudo que eu sei, tudo que meu cérebro guardou, e ser capaz de ter uma dor nas costas sem associá-la a uma grande e complexa teia de aranha.
Parece impossível (e talvez seja) deletar coisas da memória, mas nosso cérebro se modifica e cria novas conexões o tempo inteiro. A essa capacidade de aprender — e desaprender — se dá o nome de neuroplasticidade.
Assim como nos aperfeiçoamos ao praticar insistentemente um instrumento musical, pessoas que sentem dor diariamente ficam cada vez melhores nisso. É como se tivéssemos criado uma memória não adaptativa, que afeta nossa capacidade de, se não esquecer, ao menos ressignificar situações dolorosas e olhá-las sob outra ótica.
O que eu sinto é que, para eliminar a minha dor crônica, eu teria que apagar também toda a minha história. Ou talvez apenas descobrir a fórmula para desaprender tudo isso, para fazer com que meu cérebro entenda que não existe mais motivo para me enviar tantos sinais dolorosos, todos os dias, o tempo inteiro. Para que eu me sinta segura novamente.
Essa conexão entre corpo e memória não acontece apenas em relação a dores físicas, mas também a sofrimentos emocionais. Essa semana, na terapia, eu estava tentando entender o porquê de um certo comportamento que repito nas minhas relações. Eu adoro investigar as coisas a fundo, e acabei conectando essas atitudes com uma experiência traumática que tinha enfrentado no início da vida adulta. O cérebro não faz drama: se lembra.
Eu estava, inconscientemente, repetindo padrões que aprendi aos 19 anos, quando não fazia a menor ideia de como me relacionar. Assim como estou sentindo as mesmas dores que senti naquele terrível ano em que tive um Burnout médico, mas que, hoje, não fazem mais sentido.
Ao mesmo tempo, eu não quero esquecer todos os sofrimentos que já vivi, porque eles constituem quem eu sou hoje. Não quero passar o resto da vida fugindo do fato de que sim, ainda sofreremos muito, e não tem nada que possamos fazer. Não quero escapar pela saída de emergência para fingir que a tristeza não existe.
É possível que uma dor de amor não morra nunca, mas talvez seja melhor assim. Quem sabe um dia a gente encontre uma solução para “esquecer” o que precisa, de fato, ser esquecido, para vencer essa batalha contra nossa mente teimosa que nos causa tanta dor. Nem sempre acontece, mas às vezes eu ainda tenho esperança.
* Larissa Agostinho Teixeira (@dadoreoutrosdemonios) é jornalista formada pela USP com mais de 10 anos de experiência como repórter, redatora e editora de vídeos e documentários. Escreve sobre dor crônica em uma coluna em VivaBem e produz conteúdo para o Canal UOL.
Fonte: Viva bem UOL.
Descubra mais sobre Biored Brasil
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.