A chegada dos biossimilares à oncologia brasileira

Os biossimilares, produtos biológicos semelhantes aos biofármacos de referência, já podem ser considerados uma medida real no enfrentamento dos altos custos dos tratamentos de câncer. As agências regulatórias dos Estados Unidos e da Europa aprovaram vários deles para diferentes neoplasias no último ano. Estudos clínicos de eficácia e segurança chamaram a atenção no ESMO 2017, assim como a fabricação por laboratórios farmacêuticos com vasta experiência em moléculas inovadoras, como Amgen e Pfizer, mas também por empresas novas nesse mercado, a exemplo de Samsung, Celltrion e Mylan. Até 2019, as patentes de alguns dos principais medicamentos biológicos terão expirado, abrindo oportunidade para que os biossimilares passem a competir ou mesmo substituir as drogas de referência. Diante deste cenário, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) publicou um posicionamento no Brazilian Journal of Medical and Biological Research, em janeiro (veja resumo abaixo).

“A posição da SBOC é favorável à introdução de biossimilares no Brasil desde que com parâmetros científicos adequados que garantam eficácia e segurança”, afirma o Dr. Gustavo Fernandes, vice-presidente para Relações Nacionais e Internacionais da Sociedade e autor principal do artigo. “Reconhecemos a necessidade de baixar custos das drogas oncológicas para ampliar o acesso dos pacientes aos tratamentos”, continua. “É evidente que a entrada de biossimilares no mercado promoverá uma competição saudável entre os fabricantes.”

O Dr. Denizar Vianna, médico especialista em custo-efetividade e outro autor do posicionamento, explica que, quando há comprovação científica de que o biossimilar apresenta os mesmos resultados esperados com o medicamento de referência, a decisão pode ser baseada somente no menor custo, pois não existe benefício clínico incremental entre eles. “O objetivo obviamente não é economizar, mas usar os recursos disponíveis para beneficiar um maior número de pacientes”, pontua.

Nos Estados Unidos, Canadá e Europa, as autoridades fazem bem esse “filtro”, segundo Vianna, que é também professor de Clínica Médica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Somente biossimilares que apresentam evidências clínicas robustas são aprovados. Já no México, por exemplo, medicamentos ditos biossimilares sem garantia de segurança e eficácia passaram a ser utilizados e precisaram ser barrados pela Suprema Corte do país. “Nossa expectativa é que a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] cumpra seu papel, como tem feito até aqui”, revela. “A sociedade não pode permitir um eventual rompante populista de motivação puramente orçamentária que não considere os requisitos de eficácia e segurança; daí a importância do posicionamento da SBOC.”

Conhecimento e confiança

O Dr. Gustavo Fernandes salienta que o objetivo do artigo da SBOC é informar os oncologistas clínicos, as autoridades brasileiras, os gestores e todos os profissionais envolvidos no tema sobre as principais considerações a serem feitas para a aprovação e a prescrição dos biossimilares. “Trata-se de algo novo, mas que cada vez mais fará parte da prática clínica”, conta. “Queremos que essas drogas sejam introduzidas no país a partir de conceitos científicos bem definidos, que darão credibilidade ao processo, resultando em decisões adequadas, céleres, bem aceitas e capazes de promover real impacto na ampliação do acesso ao tratamento de câncer”, destaca.

Para construir seu posicionamento, a SBOC constituiu um grupo de trabalho cujos membros tornaram-se os autores do artigo. Durante o período em que se aprofundaram nas pesquisas e reflexões, dialogaram com integrantes da Anvisa, de Farmanguinhos/Fiocruz e da Sociedade Brasileira de Reumatologia, especialidade em que o uso de biossimilares começou há mais tempo. “Foi muito interessante e produtivo termos convidado os profissionais dessas instituições para relatarem suas experiências desde o processo de fabricação das drogas até questões relacionadas à aprovação e à introdução na prática clínica”, diz a diretora executiva da SBOC, Dra. Cinthya Sternberg, também autora do posicionamento.

Uma das preocupações da SBOC enfatizadas no artigo é a farmacovigilância. Harmonizar a nomenclatura, de forma que a identificação dos biossimilares seja precisa, é fundamental para rastrear produtos em caso de efeitos adversos inesperados. O Dr. Gustavo Fernandes também vê a entrada dos biossimilares no tratamento de câncer como uma oportunidade para os oncologistas brasileiros, assim como os enfermeiros e farmacêuticos, passarem a reportar mais esse tipo de situação. “Todo mundo sabe que farmacovigilância é importante, mas quando você pergunta quando foi a última vez que aquele profissional comunicou uma reação adversa incomum, a pessoa não sabe responder”, ilustra.

No posicionamento, a SBOC defende um sistema de rastreamento para os biofármacos de referência e biossimilares, cursos de farmacovigilância em escolas médicas e treinamento de profissionais de saúde de todo o país, abordagem do tema em reuniões e congressos médicos, inclusive com atuação ativa e facilitação dos esforços por parte dos fabricantes. “Não reportamos efeitos adversos na intensidade que deveríamos. No que diz respeito aos biossimilares, essa atitude é indispensável. Temos que resolver essa falha cultural”, opina o oncologista clínico.

Produção em alta

Já foi aprovado no Brasil o primeiro biossimilar oncológico. O Zedora®, princípio ativo trastuzumabe, obteve o registro da Anvisa em dezembro para pacientes com câncer de mama HER-2 positivo. A Libbs, detentora dos direitos de fabricação no Brasil, transferirá a tecnologia para um laboratório público, o Instituto Butantan, conforme acordo assinado com o Ministério da Saúde.

A produção em fábricas próprias é uma das saídas buscadas pelo Estado para diminuir a dependência tecnológica, a vulnerabilidade frente ao mercado internacional e, principalmente, o peso desses medicamentos sobre os cofres públicos. De acordo com o artigo da SBOC, as drogas biológicas representam hoje apenas 2% de todos os medicamentos comprados pelo Ministério da Saúde mas consomem 41% do orçamento para esse fim.

E o governo sabe que muito mais vem por aí. Ainda segundo o posicionamento da SBOC, existem atualmente 28 de anticorpos monoclonais (biofármacos) disponíveis no mercado para tratamento de câncer com 217 indicações terapêuticas. Além disso, os avanços terapêuticos em oncologia estão cada vez mais focados nessa classe de medicamentos pelo aumento significativo na sobrevivência global de pacientes com câncer e pela sua menor toxicidade em comparação com os quimioterápicos. Estima-se que mais de mil anticorpos monoclonais para câncer estejam atualmente sob investigação. A tendência é que os biossimilares acompanhem esse movimento e surjam opções para todos os princípios ativos com patente expirada. Bevacizumabe e rituximabe são outros exemplos de drogas com biossimilares sendo fabricados em diferentes países, inclusive no Brasil. “O alto custo dos medicamentos oncológicos é um problema mundial e, por isso, há total interesse nos biossimilares”, avalia o Dr. Gustavo Fernandes.

O vice-presidente da SBOC para Relações Nacionais e Internacionais lembra que, diante de tantas novidades, a SBOC coloca-se à disposição do Ministério da Saúde e de toda a sociedade para oferecer informações técnicas e científicas e auxiliar nas decisões relativas a biossimilares. “O objetivo do nosso posicionamento é justamente compartilhar essas recomendações no melhor interesse da saúde e do bem-estar dos pacientes”, ressalta o Dr. Gustavo Fernandes. “Esperamos que o documento sirva de base também para discussões a respeito em outros países da América Latina, já que somos o primeiro a publicar algo nesse sentido”, finaliza.

Diferença entre biossimilar e genérico

Um biossimilar é um produto biológico semelhante ao biofármaco de referência, cujo processo de fabricação não possibilita replicar de forma idêntica a estrutura do original. Portanto, não pode ser descrito como equivalente absoluto à medicação original. Já os genéricos consistem em uma cópia real da estrutura e características das moléculas do medicamento de referência.

Como a SBOC se posiciona

Introdução de biossimilares
A SBOC é favorável, pois representam uma alternativa viável, segura e econômica para o tratamento de pacientes oncológicos

Comprovação da biossimilaridade
Deve haver evidências suficientes da similaridade na composição química e atividade biológica, por meio de rigorosa validação analítica pré-clínica, seguida de estudos de segurança e eficácia em pacientes (fases clínicas)

Comparação com a referência
Um ensaio clínico que compare o biossimilar e o biofármaco de referência é necessário por meio de equivalência (recomendada) ou teste de não inferioridade, desde que a similaridade tenha sido demonstrada com uma confortável margem de confiança

Extrapolação de uma indicação para outra
Idealmente, deve ser apoiada por evidências científicas de um ensaio clínico randomizado de fase III. No entanto, a SBOC reconhece que tais estudos nem sempre são viáveis para os biossimilares ​​e podem aumentar os custos e prolongar o processo de aprovação de novas indicações. As decisões da autoridade reguladora devem ser tomadas caso a caso

Permutabilidade durante o tratamento
Tanto quanto possível, os pacientes devem utilizar o mesmo medicamento biológico ao longo do tratamento. A permutabilidade só deve ocorrer em condições estritas, incluindo a aprovação do médico assistente, do paciente e sem interferência do farmacêutico

Nomenclatura
Deve haver um sistema de nomenclatura que identifique claramente cada biossimilar para diferenciá-lo do biofármaco de referência e também de outros biossimilares da mesma molécula. Isso é essencial para garantir a prescrição específica por parte do médico, prevenir permutabilidade inadvertida e facilitar o processo de farmacovigilância

Farmacovigilância
Uma vez que os biossimilares não são idênticos, é necessário utilizar a nomenclatura específica para notificar os eventuais efeitos adversos próprios de cada um deles. Os programas de farmacovigilância existentes no Brasil são insuficientes. Os centros de tratamento de câncer em todo o país devem adotar práticas mais rigorosas na notificação de efeitos adversos

Redução de custo
Considerando a possibilidade de desenvolvimento com tecnologia mais nova e a inexistência da fase de descoberta, a estimativa é que representem reduções de custo entre 10% e 35% em comparação com os medicamentos de referência

Fonte: G.S. Fernandes, C. Sternberg, G. Lopes, R. Chammas, M.A.C. Gifoni, R. Gil, D.V. Araujo. The use of biosimilar medicines in oncology – position statement of the Brazilian Society of Clinical Oncology (SBOC). Braz J Med Biol Res vol. 51 no. 3 Ribeirão Preto 2018

Artigo original: SBOC

Deixe o seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.