Mapa do Brasil mostrando os Estados em que houve descarte de medicamentos Foto: BBCBrasil.com
Perdas em série
Uma das situações mais graves identificadas pelos auditores da CGU aconteceu na Bahia: entre 2013 e 2014, cerca de 200 mil comprimidos de Olanzapina (usado no tratamento da esquizofrenia) tiveram de ser jogados fora. Por um erro de planejamento, os remédios foram comprados e acabaram vencendo antes que os pacientes do Estado pudessem tomá-lo. No total, foram R$ 3,5 milhões descartados em comprimidos vencidos.
No caso da Bahia, um simples controle do estoque teria evitado o problema. Como a demanda por determinados remédios varia, as farmácias do CEAF têm o direito de devolver medicamentos armazenados por elas até 15 dias antes da data de vencimento dos lotes. Feito o pedido, o material é trocado sem qualquer custo para o contribuinte.
No entanto, a Secretaria de Saúde da Bahia permitiu que os remédios estragassem em seus galpões. Questionada pela CGU sobre o problema, a pasta não respondeu.
Situação semelhante aconteceu no Rio de Janeiro. Ali, perderam-se 1.104 frascos de um medicamento chamado Boceprevir 200 mg, usado para o tratamento da Hepatite C – cada unidade custa ao governo R$ 6.102,98, segundo a tabela de aquisição de medicamentos do SUS.
Neste caso, a Secretaria Estadual de Saúde disse à CGU que os medicamentos já chegaram próximos do prazo de vencimento, por serem importados, e que a prática é fazer um pedido de reposição quando isso ocorre – mas não esclareceu se os frascos de Boceprevir foram trocados.
No total, a auditoria da CGU encontrou perdas que chegam a R$ 16,07 milhões. A estimativa é da reportagem da BBC Brasil a partir dos dados do relatório aos quais a reportagem teve acesso, já que a CGU não consolidou o valor das perdas financeiras.
As perdas alarmam, mas não são o único problema do programa. Em 14 Estados, o controle de estoque simplesmente não correspondia aos remédios que realmente estavam armazenados. Ou seja: produtos foram retirados ou entraram nos estoques sem que tenham sido registrados oficialmente pelos responsáveis – o que deixa uma porta aberta para mau uso de dinheiro ou produto público.
Há ainda casos de compras de medicamentos em que os gestores públicos descumpriram a lei e trouxeram prejuízo ao erário.
Em Alagoas, a Secretaria de Saúde deixou de usar a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na compra de remédios em 2014. Ao pagar o imposto de forma indevida, houve prejuízo de R$ 156 mil. Aos auditores da CGU, o então governo estadual reconheceu a ocorrência do problema e disse que tomaria previdências para corrigi-lo.
Em Brasília, várias doses de imunoglobulina humana e outros medicamentos acabaram desperdiçados por terem sido guardados de forma incorreta – não foram mantidos refrigerados na temperatura certa. Ao todo, problemas de armazenagem foram encontrados em nove Estados. Os responsáveis pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal à época (2014) não responderam aos questionamentos da CGU.
No Amapá, os auditores encontraram embalagens de suco, frutas e garrafas d’água nos mesmos refrigeradores usados para guardar os remédios. Novamente, o então governo estadual não respondeu às perguntas dos auditores.
Medicamentos armazenados de forma incorreta em instalação do SUS no Amapá Foto: BBCBrasil.com
“Chegamos ao ponto de alguns Estados não terem sequer um planejamento para a compra desses medicamentos de alto custo. Quem não tem um planejamento não consegue nem sequer ver os eventuais problemas que podem estar acontecendo, como uma fraude ou o aumento na demanda de uma doença específica”, diz Antônio Carlos Bezerra Leonel, auditor da CGU e hoje secretário federal de Controle Interno.
Leonel, que participou do processo de auditoria, diz ainda que a CGU está planejando uma nova rodada de auditorias para verificar se os desvios foram corrigidos. E que o Ministério da Saúde criou uma equipe responsável por acompanhar os casos mais graves.
“O SUS é federativo, então o ministério não pode impor algo aos Estados (que são autônomos na gestão), mas acho que a auditoria criou condições para que haja uma troca de informações mais efetiva (entre a pasta e os Estados)”, afirma.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a responsabilidade pelo armazenamento e controle dos prazos de validade é compartilhada entre a pasta e as secretarias de saúde dos Estados. A compra de medicamentos para o SUS é divida em três grupos (básico, estratégico e especializado). Os R$ 7,1 bilhões gastos em 2016 foram para o componente especializado, que é o dos medicamentos de alto custo.
O ministério não comentou os casos de perda de medicamentos.
Refrigeradores desligados em um almoxarifado de remédios de alto custo no Panamá Foto: BBCBrasil.com
Gestão arcaica e fraudulenta
O bancário aposentado Francisco Single, de 57 anos, tem uma doença pulmonar crônica. Desde que foi diagnosticado, há um ano e meio, ele se trata com dois medicamentos que lhe custariam cerca de R$ 900 por mês – um valor alto para um orçamento de classe média.
Single diz que é comum encontrar no posto de São Paulo, onde mora, pessoas vindas de outras cidades ou mesmo Estados em busca de seus tratamentos. Elas recorrem à capital paulista por não encontrarem os medicamentos nas farmácias próximas de suas casas, diz ele.
O programa é um dos mais caros do Ministério da Saúde. Até agora, foram gastos R$ 3,3 bilhões neste ano. Em 2016, o custo foi de R$ 7,1 bilhões, de acordo com o Ministério da Saúde. O valor está crescendo: em 2015 foram R$ 5,8 bilhões, e em 2014, 4,8 bilhões, segundo a CGU.
O aposentado Francisco Single com medicamentos que ele obtém na farmácia do SUS em São Paulo (SP) Foto: BBCBrasil.com
“Havia um descasamento entre o que era investido (pelo Ministério da Saúde) e o que a sociedade recebia em retorno”, diz o auditor Carlos Leonel. “Neste contexto de ajuste fiscal é preciso melhorar a gestão, pois provavelmente haverá dificuldades (para suprir a demanda dos pacientes)”, diz ele.
O auditor diz ainda que às vezes são identificados problemas que vão além da má gestão e do descaso. “São frequentes operações de repressão, em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério Público”, lembra Leonel.
Uma desorganização no estoque ou uma falha de gestão pode ser usada para esconder um esquema fraudulento, por exemplo.
O último exemplo de investigação de corrupção na área da saúde vem de Alagoas: CGU e Polícia Federal deflagraram em oito de agosto a operação Correlatos, contra fraudes em licitações da Secretaria de Saúde do Estado. Dispensa de licitações e falta de planejamento em compras de materiais ajudaram a criar as condições para que um esquema milionário de corrupção.
Agentes públicos usavam brechas na lei para dispensar a licitação e escolher os fornecedores de remédios. No total, R$ 237 milhões foram gastos assim. Enquanto isso, faltaram insumos básicos na saúde estadual, como seringas descartáveis.
Especialistas dizem que a solução dos casos de má gestão ou mesmo de corrupção não solucionariam todos os problemas da saúde pública brasileira: há também a falta de recursos. O Brasil investe muito menos que outros países em que existem sistemas universais de saúde, similares ao SUS.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto no Brasil o gasto por pessoa era de cerca de US$ 1,3 mil anuais em 2014, na França este valor era de US$ 4,5 mil, e de US$ 4,6 mil no Canadá. Em um cenário de escassez, é ainda mais dramático que os recursos acabem desperdiçados.
Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/sus-joga-fora-r-16-milhoes-em-medicamentos-de-alto-custo,cfc44d33a0d68762ced4188cd323261775rxych7.html